Este site é um arquivo, realizado por Graziela Kunsch, de excertos da Vila Itororó. “Excertos”, no vocabulário proposto pela artista, são vídeos formados por um único plano cada e também peças de um processo maior, carentes de articulação. Os excertos são incompletos por definição; não primam pela qualidade técnica; e mostram o que está sendo filmado tanto quanto apontam para aquilo que não cabe no quadro da imagem.

Ao lado de outras obras realizadas no contexto do projeto Vila Itororó Canteiro Aberto, este trabalho adensa criticamente o presente, trazendo novos entendimentos sobre a reforma em curso desse conjunto arquitetônico, em disputa há mais de quarenta anos.

Estão reunidos aqui trechos filmados (quase todos por Graziela) desde 2006 na – ao redor da – Vila Itororó. Graziela colaborou na luta dos hoje ex-moradores em 2006 e trabalhou no projeto Vila Itororó Canteiro Aberto, de março de 2015 a abril de 2017, como responsável pela formação de público (no sentido de tornar concreta a até então abstrata dimensão pública do conjunto). É importante lembrar esses seus papéis para entender que este trabalho integra uma série de ações que vão do ativismo à ampliação do papel da artista em projetos culturais, passando pela articulação constante entre a reflexão crítica e o fazer cotidiano. Este arquivo é vivo à medida que Graziela pode seguir editando-o depois deste texto publicado – acrescentando ou tirando excertos. Quem for adentrar o arquivo pode escolher ver os excertos em ordem aleatória ou seguir o tempo linear – assistindo um vídeo após o outro e, assim, atravessar os anos –, encontrando pessoas que se tornam personagens de uma história maior, nunca totalmente revelada; mas, seja qual for a forma de assistir, surgem, nesses mais de dez anos, relações entre momentos esparsos e suspensos, assuntos recorrentes, rostos envelhecendo, ameaças reais ou fantasiosas, promessas cumpridas e esquecidas.

“Por que não cabemos dentro deste projeto?”
Excerto: Antônia Cândido, 2006

Antes de seguirmos, vale resgatar o pano de fundo dessa história. Com certo recuo, é bastante simples: trata-se da tentativa para que o restauro e o futuro de um conjunto de casas chamado Vila Itororó seja decidido com quem o habita (ou o habitou) e/ou com quem o for usar (ou já o utiliza). Mas o que acontece na frente deste pano é outra coisa. Vemos nesses excertos forças antagônicas se enfrentarem em lutas desiguais; posições políticas e intelectuais sendo (re)definidas pelas posições que cada um/a ocupa no espectro social (moradores despejados, arquitetos autônomos, arquitetos da Prefeitura, ativistas, políticos); mudanças no contexto; mudanças de posições (e, consequentemente, nas opiniões e posturas); interesses – e desinteresses – de políticas públicas viciadas e incapazes de atender demandas mesmo que claramente formuladas.

A maioria das vozes registradas são aquelas que normalmente ficam silenciadas pela história tal como ela costuma ser contada pelos vencedores. Na contramão disso, os excertos aqui apresentados foram filmados da perspectiva dos vencidos e operam, portanto, como uma singela anatomia do poder. No lugar dos fluxos claros, das causas, consequências e correlações da historiografia oficial, os excertos desenham uma história que costuma não caber, composta de milhares de gestos; uma história intricada, incompleta, incoerente e ruidosa.

Fugindo do formato do diário de militante, Graziela aparece por vezes como personagem, mas está quase sempre atrás da câmera, resgatando esses gestos cotidianos – de reunião em reunião, de panfletagem em assembleia, de casa ao trabalho – para assim “escovar a história a contrapelo” (Walter Benjamin, VII tese, Sobre o conceito da História, 1940): é o mutirão dos moradores em oposição ao maquinário do despejo; a presença constante de Dona Cida; as idas e vindas de políticos e técnicos; o puxadinho que sustenta o palacete; os andaimes acoplados à casa 11; a pintura inacabada de Rodrigo Cunha; os desenhos bem resolvidos de Decio Tozzi; a canela no quentão do Seu Luiz; a frieza burocrática da reunião na Sehab. Por serem parte de uma história considerada menor (gestos cotidianos, reuniões longas, encontros na cozinha, no banho, no quintal), esses excertos desvendam melhor os processos violentos que agem por trás da história da Vila Itororó do que os registros tradicionais (jornais, discursos, atas de reunião, projetos arquitetônicos) de uma história escrita para ser oficial.

A Vila Itororó nasce como monumento falido – “monumento” à medida que o seu idealizador, Francisco de Castro, brasileiro de origem portuguesa, pretendia promover o seu empreendimento imobiliário inaugurando o “palacete” da vila no centenário da independência do Brasil; “falido”, pois nunca integrou a história oficial e se manteve como conjunto heterogêneo, sem forma fixa, sendo remodelado constantemente pelo próprio Francisco de Castro e pelos demais moradores e proprietários subsequentes. Enquanto os monumentos costumam ser documentos oficiais, firmes e fortes, que celebram as guerras e as destruições passadas com o objetivo de reforçar os poderes estabelecidos, a Vila Itororó, construída em parte com materiais de demolição oriundos de uma cidade passando por violentas transformações, é o documento maleável e borrado da precarização das formas de morar que sobraram para os mais pobres no centro da cidade. Ela é o avesso do avesso, popular e eclética acima de tudo, a transição não oficial de uma cidade colonial escravocrata para uma cidade moderna segregada. É no fracasso da Vila como monumento oficial que surge sua relevância – e estranha beleza – como documento histórico não oficial e não resolvido de um mundo desabando.

A Vila Itororó conta uma outra história possível de cidade. Talvez por isso ela continue em disputa. Enquanto uns querem capturar e neutralizar sua história, destacando a sua excepcionalidade como “vila surrealista” folclórica e silenciando assim o que ela tem mesmo a contar da cidade, outros apenas querem seguir habitando-a, lembrando que sua construção aponta para outras formas de morar no centro da cidade. Para os primeiros, em nome da salvaguarda do conjunto, o que não cabe na Vila Itororó é uma vida popular que se autodetermina e constrói suas próprias casas, que não se conforma com prédios padronizados e com padrões de vida desenhados por outros. Para os segundos, mesmo que na ameaça iminente do desabamento da Vila, o que precisa caber ali é uma qualidade de vida mínima e coletiva para os mais pobres.

Por conta dessa disputa ao redor da definição de o que é “público” ou o que José Eduardo Lefevre chama, em um dos excertos, de “interesse maior”, a reforma em curso não pode apenas ser um projeto de restauro “melhor” do que o projeto anterior – pois, sendo “melhor”, seria apenas um aperfeiçoamento do mesmo, congelando a Vila em um passado que nunca existiu (com ainda mais facilidade na ausência dos moradores), mesmo que com levantamentos mais precisos, com um resgate sábio dos ornamentos desaparecidos, com intervenções contemporâneas discretas. O restauro deve ser diferente, construído de baixo para cima, partindo do presente para pensar o passado e conseguindo assim lidar com a precariedade do conjunto e com suas muitas e vivas camadas sem tentar resolvê-las em uma narrativa linear. Este projeto outro passa pelo programa de uso e pelo restauro material.

Na real dúvida sobre a nossa capacidade de realizar isso, em meio às engrenagens da burocracia pública, este trabalho de fôlego de Graziela propõe uma leitura crítica da Vila Itororó como antimonumento, reunindo aqui alguns documentos da barbárie dos vencedores, mas escritos pelos vencidos. Para quem quiser ouvi-las, essas vozes clamam por resgatar o potencial disruptivo da Vila como patrimônio verdadeiramente popular.

“Os vencedores marcham juntos no cortejo de triunfo que conduz os dominantes de hoje por cima dos que hoje jazem por terra. A presa, como sempre de costume, é conduzida no cortejo triunfante. Chamam-na bens culturais”.
Walter Benjamin, VII tese, Sobre o conceito da História, 1940

Benjamin Seroussi, curador
25 de janeiro de 2018

_ Este site foi comissionado em 2015 pelo projeto Vila Itororó Canteiro Aberto, uma parceria da Secretaria Municipal de Cultura da Prefeitura de São Paulo com o Instituto Pedra. A responsabilidade pela obra é da artista.